Há anos atrás conhecia a A2 de olhos fechados. Sob o sol ardente do verão estoirei quilómetros de gasóleo sobre aquela estrada. Parei em todas as estações de serviço vezes sem conta. Passei a ponte que me liga à minha cidade em total alegria ou total tristeza, dependia da luz do sol ou das luzes que brilhavam lá no alto dos candeeiros de rua. Acelerava o coração ou serenava a minha cabeça na medida certa. No total comando das minhas decisões. Sempre que entrava naquela casa que cheirava a tabaco e a álcool elevava-me ao meu melhor. À pessoa que naquele momento eu era. Fechava os olhos e deixava-me levar. Muitas vezes, ao sabor da madrugada libertava-me no silêncio da minha despedida e abraçava as ondas do mar ao som do motor do meu carro. Era a minha segunda casa. Foi aquela que me permitiu voar quando o sol queimava tudo o que tinha ficado para trás. Outras vezes deixava-me adormecer na maca do meu trabalho por não querer ir para casa. Acordavam-me sempre timidamente "Joana, o teu turno acabou. Vai para casa". Depois davam-me um saco com comida que me reconfortava o coração e um beijinho na testa. Metia-me no carro, passava os portões que tão bem conhecia e era de novo eu mesma. A única parte que usava da minha casa era o chuveiro e poucas vezes, raras, a minha cama. Aquela não era a minha vida. Mas foi lá que fui feliz. Mais do que consegui admitir a mim mesma. Fiz o que quis, quando quis. Permiti-me tomar as rédeas, lutei de mangas arregaçadas e com uma garra de querer viver tudo ao mesmo tempo. E vivi. Tudinho. Com muito sacrifício pessoal, com muita vontade de vencer. Mas agora que tudo ficou lá atrás, preso naquelas ondas que rebentavam ao amanhecer, agora que a vida me venceu mais uma vez, percebo a falta que me fazem aqueles quilómetros em que o sol me queimava as mãos ao volante. O ar quente que me entrançava os cabelos na necessidade de uma vida melhor. Hoje percebi que tenho de arregaçar as mangas mais uma vez, não depender das decisões dos outros, fazer sacrifícios e lutar. Porque a sorte nunca esteve do meu lado, nem nada me caiu no colo. Esperei meses, dias sem fim, confundi palavras e acções, confundi-me. Esta é a minha vida, a minha luta, a minha garra. Não posso deixar-me ir ao sabor do vento. Mas hoje, só hoje, vou permitir-me fechar os olhos e imaginar o acelerador debaixo do meu pé, o vento quente no meu cabelo e a A2 toda pela frente. Vou imaginar que tenho asas e voar para longe daqui, de encontro à pessoa que já fui, àquela que tenho de voltar a ser.
[2010 - Praia Maria Luísa]
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