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As princesas também têm olheiras

Abro a porta e o fecho do lado de fora das botas de salto alto, praticamente ao mesmo tempo. Enquanto tento descalçar uma, vou a pé-coxinho até ao quarto. Sento-me na cama e descalço a outra. Respiro de alívio. Tiro os brincos e o colar de ouro que me ofereceram no natal. Levanto-me e dispo o casaco. Uma linha fica presa no travessão que mantem o meu cabelo impecável e profissional. Digo uma asneira. Abro o travessão e arranco um punhado de cabelos com força. Começo a praguejar e contenho as lágrimas nos olhos. Estico o braço para trás, primeiro por cima do ombro, depois pela cintura, até chegar ao fecho do vestido. Que depois do esforço infernal de alongamentos, escorrega pelas meias de liga. Aquelas que uso em dias especiais. Deslizo-as com cuidado para não lhes tocar com a unha que parti ao fechar a porta do carro. Anoto para mim que tenho de mudar o verniz. Olho para o creme hidratante na mesa de cabeceira, mas está tanto frio que expulso logo a ideia da cabeça. Tiro o soutien de renda que combina com as meias de liga e percebo que a gravidade ataca sem receio. Enfim. O creme hidratante volta a olhar para mim e insisto em não reparar. Mais uma nota mental : a partir de amanhã trato de mim a sério. Enfio as meias de lã que se usam no pólo norte e as calças polares do pijama. Enfio a camisola do pinguim em três tempos e desalinho o resto do cabelo que me sobrou, depois do puxão fatal. Calço as pantufas, prendo as calças dentro das meias e a camisola dentro das calças. Vou até ao espelho, pego no desmaquilhante e volto a dizer olá às minhas queridas olheiras. Quando volto a passar no espelho à entrada, penso para mim: como pode uma mulher passar de princesa a mendiga em cinco minutos?
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