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o ódio dentro do amor

É o preto no branco. O ódio dentro do amor. O mundo dentro do olhar. Os pés descalços e os gatos vadios. As noites de trovoada e a chuva fria na terra. Todas as coisas boas dentro das coisas más. Nós, as mulheres. Animais gigantes, de força interior, de natureza severa. Alimentamo-nos de amor, de guerras, de ódios de estimação. Protegemos o nosso mundo com garra, com os sentimentos misturados em suor à superfície da pele, com a garganta seca e os olhos molhados, com a subtileza de uma explosão nuclear. Desbravamos caminhos interiores sem facas de mato e sem bússola, com a intuição às costas e a vida debaixo dos pés. Somos caçadoras. Tiros certeiros, de olhos fechados, guiados apenas pelo coração, pela fé, pela esperança de abraçar tudo o que nos faça feliz. A vida dentro de cada uma, um universo paralelo de sentidos, o toque mágico de uma dependência, que sai de dentro. O amor incondicional que nasce exatamente no mesmo momento em que respiramos, a necessidade de o sorver, de o guardar, de lutar por ele. O amor move barreiras, construímo-lo, movemos montanhas para alcançá-lo. Uma vida inteira, duas vidas inteiras, a eternidade, nada parece tão certo como lutar pelo amor. Engolir mãos cheias de dúvidas, despedaçar a alma e voltar a colar tudo no mesmo sítio, vezes sem conta, vozes sem som. Somos o grito da liberdade, do início e do fim, da vida que nasce em nós, do desassossego, da curiosidade. Testamos limites, rendemo-nos ao inimigo, matamo-lo a dormir. Choramos no escuro e sonhamos à luz do dia. Bebemos o sol, perdoamos tudo, não esquecemos nada. Escondemos os resquícios de malvadez nas gavetas, no sótão, dentro da boca fechada. A leveza da vingança dentro da bondade. O sorriso fácil que treinamos desde crianças, a resultar no nosso pai. Meia pirueta, uma música desajeitada, lágrimas fáceis e a manipulação no seu melhor. Somos bichos enérgicos, rodamos no sentido da terra e nunca abrandamos. Abrandar é fraquejar, é não ter capacidade de reagir, é não ter tempo. O tempo de crescer, de fugir de nós mesmas, o tempo para acrescentar uma vírgula, quem sabe uma hora inteira, mestres em esticar o tempo. Acrescentar amor ao tempo, dias ao tempo, tempo ao tempo. Que corre sem parar. Sempre contra nós, porque somos crianças, porque somos jovens, porque somos maduras, porque somos velhas. Damos importância ao que faz de nós quem somos, ao que os outros nos reconhecem, ao que a sociedade não espera e não consente, sem prazos e limites de tempo. E nós a rejuvenescê-lo. A dar-lhe prazer. A ter em troca o que a vida tem para oferecer. A comer felicidade com os olhos, as mãos, o corpo todo. A digeri-la. A partilhá-la. Nós, as mulheres. Seguras, inconstantes, inteiras, indecisas, divididas entre este mundo e o outro, qual espectro de sofrimento. Mulher que sofre, mulher para sempre. Eternizadas por gerações, indiscretas nas relações, secretas dentro dos corações. É esse o nosso segredo, o truque, a mais-valia, a coragem. É sermos uma dentro de outra. O ódio dentro do amor. O preto e o branco, nunca os cinzentos, nunca medíocres. Somos o tudo e o nada. A desgraça e a alegria. A alegria de viver, porque a vida acaba e começa em nós. Nós, o princípio e o fim. E o amor pelo meio.


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6 comentários

  1. E estas tuas palavras fazem todo o sentido, especialmente hoje. :*

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  2. Estou comovida com o este texto. Tão bem escrito, tão profundo, tão inteiro. Não há nada para acrescentar aqui. Está tudo dito. Que pensamento tão bem estruturado, que palavras tão sentidas! Preciso de respirar fundo. :)

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  3. Fiquei sem palavras. Amei o texto :)
    https://instagram.com/annabelle_madeira/

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  4. Olá!
    Fui nomeada para um Liebster Award e é suposto (mas não obrigatório) nomear mais 11 blogs e eu escolhi o teu como um dos meus nomeados.
    Vai ao meu blog (http://lenaspetals.blogspot.pt/) e vê tudo o que tens de fazer (mais uma vez, não és obrigada a continuar estas nomeações).
    Beijinhos e continua o bom trabalho! :D

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  5. Que texto lindo ! Caramba, fiquei sem palavras...

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