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Patinhas e papoilas

Olhaste-me nos olhos, naquele último instante, e foi quando percebi que parte de mim me ia abandonar para sempre naquele dia. Perdemo-nos as duas no olhar uma da outra e adormeceste. Quando te embrulhei na minha mantinha de bebé, senti-te mais pequenina do que nunca. Como se tivesses perdido todo o amor que sentia por ti. Levei-te nos braços para a tua casinha no banco de trás do carro. Perdi parte da inocência que caracteriza a juventude dos adolescentes enquanto te conduzia ao lugar onde ficarias a descansar para sempre, por aquelas estradas estreitas. Não consegui deixar de perceber que tudo continuava igual. Os carros que se cruzavam connosco e tu ali, fria, frágil. Foi a única viagem que fiz sem olhar uma única vez pelo espelho retrovisor. A esperança já nos tinha abandonado. Tu, com o coração gelado e as patinhas frias, continuavas deitada no banco de trás, e o mundo continuava à nossa volta. Era verão, o calor envolvia a paisagem e eu não consegui chorar. Lembrei-me de quando passava dias longe de ti e no regresso dormia a noite inteira com o teu calor colado às minhas costas, ou de quando entrava triste e não me perdias de vista um segundo que fosse. Sentavaste nos móveis mais altos e estavas constantemente de vigia. Guardavas a minha infelicidade, numa tentativa que ela não crescesse e transbordasse. Numa tentativa de conteres a minha tristeza. Nós, as duas, no carro, quilómetros de estrada. O teu frio gelava-me as mãos. Estavas tão quieta, tão pequena. Perdeste toda a tua força, a que ainda te fez aguentar um ano de dores e cirurgias. Lutaste com tudo o que tinhas, mas mostraste-me que nada é para sempre. Que é ao desistir que muitas vezes somos mais fortes que tudo o resto. Ao guiar-te reconheci que já não eras minhas, passaste a ser de outra coisa qualquer. Quando te deitei no meio da terra onde saltitavas feliz em tardes de sol, pelo meio das papoilas, eras quase nada. E eu nada fui ao deixar-te para trás. Depois de doze anos contigo no colo, deixei-te ir. Para onde quer que estejas. Mas sei que sempre que o vento embala as papoilas estás de vigia. Aí, onde nada tem substância, mas onde continuas  guardar-me.




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3 comentários

  1. As lágrimas correm-me pelo rosto abaixo. Fez um ano no princípio de Julho que a minha cadela me deixou, tinha 15 anos e o coração cansado. Chorei o dia todo e choro todos os dias quando penso nela. As saudades são tantas, que dói.
    Força, a vida continua, não é a mesma coisa, mas onde está, olha por ti, de certeza.
    Um abraço apertado.

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  2. Ao ler este texto vieram-me à memória tantas tardes passadas em tua casa com a Teca... Agora também eu fiquei cheia de saudades dela.

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